Crónica de Licínia Quitério | É a vida…

Crónica de Licínia Quitério

 

De ontem e de hoje – É a vida…

por Licínia Quitério

 

Agora tem tempo, não é como dantes, sempre numa corrida, trabalho, trabalho, trabalho. Anos, muitos anos de dureza e pouco ganho. Já quase a despedir-se para a reforma, o corpo dorido, nenhuma esperança em melhor sorte, desabafava:

— Quando Deus quiser que me leve, que já vi tudo o que há para ver,
A preparar-se para os últimos anos da viagem, aconteceu o milagre, que ainda acontecem, segundo ele afirma de prova provada. A mulher muito o atenazava por causa daquela despesa todas as semanas:

— Esperas que te saia, homem!

— Há horas de sorte, mulher.

— Pois sim, sai-te do bolso para fora e tanta falta nos faz.

E ali estão eles a desfiar lembranças de companheiros dos tempos idos.

— Lembras-te do Sebastião?

— Então não havia de me lembrar! O gordo?

— Sim, morreu a semana passada. Não sabias?

— Não, mas morreu de quê?

— Ora, de estar vivo. Coitado, morreu de uma doença má que andava a miná-lo, já nem era o gordo, parecia um papelinho, magrinho e sem cor.

— Raio de doença, não há meio de descobrirem remédio para ela. O meu filho diz que já descobriram, mas andam a esconder,

— Essa é muito boa! A esconder porquê?

— O dinheiro, pá, o malvado do dinheiro. Olha, eu nem quero falar disto, faz-me mal. Tu é que tiveste sorte com o dinheiro do jogo, que te faça bom proveito. Eu não sou invejoso, mas também me tinha dado jeito, pois, haja saúde, estás a ver, ao Sebastião já não lhe faz falta.

— Que será feito do Teles, o chinês?

— Ele não era chinês, ganhou a alcunha porque um dia deu em vender gravatas e nesse tempo, lembras-te, era negócio de chinês. Agora estão por todo o lado, chineses e pretos vem tudo aqui parar. Está bonito, está.

— E isso incomoda-te?

— A mim não.

— Então deixa-os lá, são gente como nós.

— Eh pá, desculpa, não me lembrei que a tua nora…

— A minha nora é a mãe dos meus netos e tomaram muitas brancas serem tão boas mães como ela é.

— Eh pá, desculpa, bem diz a mulher que eu sou um desbocado.

— Estás desculpado, mas voltando ao chinês, ao Teles, ele morreu há muito, também já ia nos oitenta, por aí fora, o que o matou foi a bebida, não largava a cerveja.

— Foi isso, foi.

— É a vida, pois, é a vida.

Dito isto, faziam uma pequena bolha de silêncio a desembrulhar lembranças de conhecidos de outros tempos que haviam de vir alimentar a conversa.

 

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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